Texto: Andréa Moura
Ossos humanos estão sendo jogados na lixeira de Neópolis, localizada no sítio Lagoinha, distante aproximadamente quatro quilômetros da sede da cidade. O despejo de restos mortais começou a acontecer há quase um ano, de acordo com as pessoas que vivem e trabalham no lixão. “Não estou mentindo não, minha filha! Juro por Deus que temos encontrado coisa desse tipo aqui. Não foi uma ou duas vezes que a caçamba da coleta deixou resto de gente aqui na lixeira não. Teve uma vez que deixaram os ossos de um defunto completinho, tudo na ordem certinha. Fomos nós quem cavamos e enterramos o pobre”, declarou Maria Célia Medeiros, 53 anos de idade, há 14 morando, junto com a família, em barracos improvisados dentro da lixeira.
De acordo com Cândido, 53 anos, e esposo de Célia, há quase um mês um novo despejo, desta vez com menos ossos, mas com muito resto de caixão, mortalhas e até pedaços de cabelo humano foi realizado, não dentro do perímetro da lixeira, mas junto a um poste instalado na estrada vicinal que passa em frente ao local. “Tinha muita coisa mesmo, mas dias depois veio um trator da prefeitura, misturou tudo e jogou areia por cima. Acho que fizeram isso porque teve um moço por aqui filmando tudo e dizendo que ia saber do prefeito porque estavam jogando esse tipo de material por aqui”, disse o reciclador.
Sinval Medeiros de Araújo, 36 anos, um dos sete filhos de Célia e Cândido que vivem no lixão, disse que de um ano para cá já viu várias ossadas na região, enfatizando que a maioria chega em sacos de napa ou em mochilas plásticas de cor preta. “Sempre que vem coisa desse tipo a gente pergunta pros caçambeiros de onde vem o material e eles dizem que é da rua. Só uma vez que perguntamos e eles disseram que foi o padre quem tinha mandado botar no lixo, e que aquilo tudo era resto da limpeza do cemitério”, relembrou Sinval. De acordo com a delegada da cidade, Michele Araújo dos Santos, o assunto é novidade para ela, pois até o momento da visita da equipe de reportagem do JORNAL DA CIDADE nenhum comentário do tipo havia sido ouvido.
“Estou surpresa com tudo isso, porque não recebemos de nenhuma denúncia até agora, mas tenha a certeza de que vamos apurar. Vamos solicitar explicações do padre, que é o responsável pelo cemitério da cidade, e acionar, inclusive, a criminalística para saber se esses ossos existem mesmo e, existindo, se são de humanos”, explicou Michele Araújo.
Material hospitalar também é encontrado
Mas esse não é o único material inadequado com o qual os catadores da lixeira de Neópolis têm de conviver. Numa frequência bem maior é descartado material hospitalar sem que haja a devida separação e, com isso, os catadores têm fácil acesso a seringas com restos de sangue e agulhas, restos de material para exames e outros tipos de dejetos, que não deveriam ser jogados de qualquer jeito. Simonal Medeiros de Araújo, de 25 anos, ficou quase 15 dias doente depois de ter picado o dedo numa seringa.
“Chegou como se fosse lixo normal e quando fui catar o material acabei me picando. Depois disso passei umas duas semanas com febre e dor de cabeça sem saber direito o que era, só sei que incomodava muito”, comentou o catador, que disse ficado melhor apenas bebendo chá, já que ao longo de sua vida nunca foi a um médico. Além da picada em agulhas infectadas, faz parte da rotina dos catadores do lixão de Neópolis cortes e machucados em outros materiais perfuro-cortantes, como eles próprios relataram. “Aqui a gente vê muita coisa errada, moça, mas não podemos falar porque é desse lugar que tiramos o nosso sustento, é aqui onde dormimos e comemos”, declarou um dos catadores.
Antes mesmo de chegar ao local, a visão que se tem do lixão é desanimadora. Na rua que dá acesso à área o lixo toma conta. Ao cruzar a cancela, a tristeza é ainda maior, pois são seis famílias, todas parentes, que vivem em pequenos barracos improvisados, com piso de chão batido, em meio a muita mosca e sujeira. Cerca de dez crianças e adolescentes, com idade entre um e treze anos, vivem no lixão e participam com os adultos, sem nenhum tipo de cerimônia ou cuidado, da coleta de recicláveis.
“Eles são nascidos e criados por aqui, afinal de contas são quatorze anos morando nesse local. Os menores não têm para onde ir ou com quem ficar porque não tem creche ou escola para a idade deles, por isso que ficam mais por perto”, comentou Célia Medeiros. Segundo ela, o fato das crianças estarem em contato direto com o lixo e passarem a maior parte do tempo descalças, e algumas até sem cueca ou short, não faz com que fiquem doentes. “Elas não têm nenhum tipo de doença, se bem que há um ano não vem um agente de saúde por essas bandas”, frisou. Segundo ela, também faz muito tempo que a agente de endemias e de controle de zoonoses esteve no local, embora haja muito cachorro, e com aspecto pouco saudável na região.
“Na verdade, o que mais queria era uma casa decente, num local decente para poder morar com minha família e ter o lixão somente como fonte de renda, só para trabalhar”, lamentou Célia.
Responsabilidade
As declarações dos catadores, no que diz respeito ao despejo de restos humanos na lixeira de Neópolis, envolveram duas instituições: a paróquia e a prefeitura. A primeira, porque certa vez os que fazem o transporte do lixo disseram que a ordem para colocar o material na lixeira teria partido do pároco, o padre Alailson Santos Souza; e a segunda, por o serviço de coleta de lixo ser uma responsabilidade do poder municipal. A equipe de reportagem do JORNAL DA CIDADE entrou em contato com o padre e com Marcelo Guedes, prefeito de Neópolis, e os dois disseram não ter conhecimento da situação.
O padre Alailson confirmou estar havendo uma grande obra de reforma e reordenamento do cemitério paroquial, construído em 1882 e, por sinal, o único para atender todo o município – mas principalmente a sede da cidade, já que em alguns povoados existem uns bem menores.
Atualmente, Neópolis conta com 23 povoados e cerca de 20 mil habitantes. Esse reordenamento do cemitério consiste na retirada dos restos mortais das gavetas para o ossuário coletivo, traslado que só é realizado com a autorização e presença dos familiares do falecido. “Esse processo, inclusive, está tendo o acompanhamento do Ministério Público Estadual. Não há descarte de ossos humanos em lugar algum. Se por acaso estão fazendo isso, garanto que não são os que estavam enterrados no cemitério paroquial”, garantiu o padre. Esse trabalho de reforma e ampliação do cemitério local foi iniciado em maio de 2009.
Se o padre não sabe de onde estão saindo os possíveis ossos, o prefeito Marcelo Guedes diz saber menos ainda. “Não tenho a menor ideia do que esteja acontecendo e tenho certeza de que esse problema não é meu, porque não administramos nenhum cemitério. Também não estão sendo transportados nos caminhões de coleta da prefeitura, porque não têm autorização para tanto. Independente de qualquer coisa, vamos começar a averiguar o fato”, declarou Marcelo Guedes, cujo discurso vai de encontro ao dos catadores, que afirmam serem os caminhões municipais os responsáveis sim pelo despejo.
A secretária de Obras do município, Sidney Leite Andrade, fez questão de informar que um novo comunicado, proibindo o despejo de materiais oriundos do cemitério – mesmo que seja resto de construção –, fora emitido após o contato feito pelo JORNAL DA CIDADE, pois, segundo ela, a obra de reforma e ampliação que está sendo feita não tem licença para acontecer. “Tudo o que está sendo feito é por conta de uma decisão judicial, pois o padre não tem licença, de nenhum órgão, como Adema e prefeitura, para fazer nada. Ou seja, não sabemos o que está sendo feito realmente e de que maneira está sendo realizado. Se os ossos que os catadores nos garantiram que existe não são do cemitério paroquial, não sei de onde são, porque não está havendo nenhum tipo de serviço nos cemitérios menores que ficam nos povoados”, esclareceu Sidney, enfatizando que essa obra já fora embargada duas vezes.
Quanto às reclamações de que as pessoas que moram no lixão não têm acesso aos serviços de saúde e educação (ensino infantil para as crianças com idade inferior aos quatro anos), o ex-prefeito de Neópolis e atual chefe de Gabinete da prefeitura, Carlos Guedes, disse que o poder municipal oferece sim educação infantil e que o serviço de saúde para aquelas pessoas é fornecido numa comunidade próxima ao local. Falou ainda que em 2009 a família de Maria Célia Medeiros foi contemplada com uma moradia popular no conjunto conhecido como Cohab III, distante cerca de três quilômetros do lixão. “Eles inclusive receberam as chaves durante a minha gestão, mas não sei por qual motivo não foram morar na casa, que até hoje está fechada”, finalizou Carlos Guedes.
JORNAL DA CIDADE
1 comentários:
Meu Deus este assunto dos restos mortais é muito sério.Saber que podem ser pessoas que votaram nestas criaturas frias que mandaram fazer isto.
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